Este curto trabalho se propõe a, uma vez definido o que seria RPG, analisá-lo a luz da Bíblia, buscando compreender se as criticas de alguns teólogos e lideres protestantes normalmente dirigidas a este passatempo sustentam-se dentro de um paradigma teológico.
1. Introdução
É comum os teólogos e as congregações protestantes manifestarem-se de forma conservadora diante das novidades, em especial quando estas estão relacionadas ao entretenimento. Foi assim com o cinema, televisão, desenhos animados e com os videogames. Busca-se nestes casos uma leitura dos textos bíblicos no sentido de consolidar uma exclusão, uma proibição, uma prova de que o elemento analisado (seja programa, filme, desenho ou jogo) seria imundo e impróprio para consumo de um cristão genuíno. Não é de se surpreender, portanto, que os Jogos de Interpretações de Papéis, comumente chamados de RPGs, tenham sido expostos, teologicamente, a este mesmo tipo de tratamento.
Este artigo se propõe a demonstrar, através de bases bíblicas, que o RPG não vem a ser, ao menos por si próprio, maligno ou nocivo, mas, como qualquer coisa, pode ser inofensivo ou prejudicial dependendo de como é utilizado.
As fontes para esta análise são alguns dos títulos de RPG mais comuns, junto a uma interpretação de textos bíblicos pertinentes ao assunto.
2. Definindo RPG
Estabelecer o que vem a ser RPG não é uma tarefa simples. Cada Jogo de Interpretação de Papéis trás uma definição própria de si mesmo, e vários estilos diferentes podem ser encontrados tanto no mercado nacional como estrangeiro. Entretanto, através de uma analise comparativa, é possível estabelecer um denominador comum acerca do que seria RPG. Este denominador estaria em três pontos: interpretar papéis, vencer desafios e contar uma historia no processo. Estes elementos são onipresentes em qualquer Jogo de Interpretação de Papéis.
Se não, vejamos. O titulo D&D, em sua 3° Edição (COOK & TWEET 2001), define-se da seguinte forma:
Bem vindo ao jogo que definiu a imaginação fantástica por mais de um quarto de século. Quando joga Dungeons & Dragons, você cria um personagem fictício único, que vive em sua imaginação e na imaginação de seus amigos. Uma pessoa no jogo, o Mestre, controla os monstros e as pessoas que vivem no mundo de fantasia. Você e seus amigos enfrentam os perigos e exploram os mistérios que seu Mestre coloca em sua frente.
Apesar de implícito, o aspecto de contar uma historia se faz presente na medida em que a atividade gira em torno de criar um personagem que será representado pelo jogador diante dos desafios que o “Mestre de Jogo” (um outro participante) estabelece. No titulo GURPS (JACKSON 1994, página III), encontramos algo muito semelhante:
Roleplaying Game (RPG) em tradução literal significa “Jogo de Representação”, mas ele é na verdade um tipo de jogo muito peculiar, pois em um RPG não há vencedores: todos se divertem e todos ganham.
As pequenas e grandes batalhas, as verdadeiras emoções, se dão no desenrolar de uma história, uma aventura, que é criada e vivida pelo grupo de jogadores. É no desenrolar destas histórias que surgem as derrotas e vitórias. Altos e baixos, que somados ao fim garantem ao participante a satisfação de ter atuado como um viajante dos caminhos que imaginação da equipe resolveu trilhar.
Mais uma vez, o aspecto de representar personagens, vencer desafios e contar uma história fazem-se presentes. Desta forma, o prazer, o sentido e o objetivo de jogar RPG consistem nestes aspectos.
O polemico Vampiro: a Máscara (HAGEN Devir, 1994), sucesso absoluto de vendas durante a década de 1990, de temática forte e indicado para maiores de 18 anos acaba por apresentar os mesmos conceitos:
Vampiro é um jogo de faz-de-conta, de mentirinha, de contar histórias. Embora Vampiro seja um jogo, seu objetivo está mais em contar histórias que em vencer. Se você nunca fez este tipo de coisa antes, deve estar confuso com o próprio conceito de um jogo de contar histórias. Porém, depois de compreender os conceitos básicos, descobrirá que a coisa não é tão estranha assim mas, na verdade, curiosamente familiar.
Você e seus amigos contarão histórias de loucura e de desejo. Histórias de coisas que duelam na noite. Contos de perigos, de paranóias, de um mal sinistro. Contos oriundos de um recesso mais sombrio de nosso inconsciente. E no âmago destas histórias repousam os vampiros.
Estas histórias irão conquistar a sua imaginação muito mais prontamente que qualquer peça ou filme. Além disso, são de uma natureza mais sombria que os contos de fadas de nossa infância (os quais, aos revermos com olhos adultos, também parecem bem sinistros). Isto por que você é parte da história, e não um mero espectador. Você a está criando à medida que prossegue, e o resultado é sempre incerto.
O foco fica claro no ato de contar histórias, para o qual o autor apresenta especial zelo, mas estas histórias são contadas através dos personagens representados pelos jogadores diante das tramas da historia. Mais uma vez a interpretação de personagens, o vencer desafios e o contar uma história se fazem presentes. Embora o foco em um ou outro possa variar, estes elementos podem ser encontrados em qualquer titulo do mercado.
Não é meu objetivo neste artigo alongar-me sobre a definição do que vem a ser RPG. Mas este esboço é suficiente para mostrar que o RPG nada mais é do que um passatempo onde seus participantes interpretam personagens fictícios, representando-os diante de desafios imaginários contando, assim, a história da trajetória destes mesmos personagens.
Esta conclusão baseia-se na tentativa de se construir uma definição de RPG baseada em um consenso de discursos, discursos estes produzidos pelos próprios autores destas obras quando se propõem a definir o que é RPG. Ao examinarmos a proposta destes escritores, é possível encontrar tais definições presentes nas três principais obras do gênero, examinadas neste trabalho, e também nos demais trabalhos relacionados à RPG existentes no mercado. Obviamente, este consenso discursivo é fundamental para a compreensão do objeto aqui analisado, na medida em que não somente procura defini-lo de forma explícita, mas, também, busca também produzir (ou reproduzir) um comportamento entre indivíduos aos quais se destina o discurso (FOUCAULT 1979). O resultado ao qual tal discurso busca entre os jogadores de RPG é o mesmo já colocado: representar personagens fictícios vencendo desafios virtuais e contando uma história no processo.
É a partir desta definição discursiva que o RPG será analisado à luz das escrituras. Firmado tal conceito, a questão desloca-se a um paradigma teológico, a fim de responder a seguinte pergunta: a luz da bíblia, representar personagens, vencer desafios virtuais e contar histórias seria pecado ou impuro?
3. Crianças judias e suas brincadeiras
Arqueologicamente falando, as crianças de Israel não tiveram as mesmas opções de divertimento que as crianças de outras civilizações. Os brinquedos típicos eram bonecos ou bonecas geralmente feitos de argila ou barro, ou jogos de tabuleiro simples (com mecânica semelhante a damas, ludo ou gamão, por exemplo). Estes brinquedos eram tipicamente condenados pelos sacerdotes judeus daquele tempo, devida a associação de tais peças a imagens, cuja adoração era proibida, embora não exista texto algum do Primeiro (Antigo) Testamento falando especificamente sobre brinquedos.
Desta forma, as crianças de Israel divertiam-se com toda sorte de jogos e brincadeiras, como amarelinha e pique. Mas entre estas brincadeiras, havia uma que interessa em especial ao analisar o RPG à luz da Bíblia. As crianças gostavam de representar tipos comuns da sociedade ou história judaica. Por exemplo, alguns meninos poderiam brincar de “Davi e seus solados”, cada um representando um herói da história de Israel, e três crianças, dois meninos e uma menina, poderiam “brincar de casamento”: um representaria o sacerdote e os outros dois, o casal de noivos. Arqueologicamente falando, este tipo de brincadeira era bem comum em Israel (GOWER 2003).
Para a sorte de quem procura entender o RPG à luz das Escrituras, no Evangelho de Mateus (capitulo 11, versículos 16 ao 19), Jesus teria dito algo interessante usando esta brincadeira como exemplo:
Mas, a quem assemelharei esta geração? É semelhante aos meninos que se assentam nas praças, e clamam aos seus companheiros, E dizem: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes. Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis aí um homem comilão e beberrão, amigo dos publicanos e pecadores. Mas a sabedoria é justificada por seus filhos.
O versículo não fala diretamente sobre RPG, evidentemente. Mas observe que Jesus usa como exemplo a brincadeira de “representação de papéis” das criancinhas judaicas. Em sua colocação, Jesus compara a insatisfação dos religiosos da época para com ele e João Batista (o primeiro come e bebe, enquanto o segundo era mais recluso em suas relações sociais, mas, para os fariseus não estariam satisfeitos com nenhum dos dois) com a insatisfação de algumas crianças que brincam de representar papéis: não querem cantar quando se representa músicos entoando louvores, nem querem chorar quando se representa Profetas entoando lamentações.
Observe que o cerne da passagem fala da constante insatisfação e dos fariseus. Entretanto, observe também que Jesus não condena a brincadeira de representar papéis das criancinhas, antes usando a má vontade dos que brincam como comparação a má vontade de uma parte dos religiosos da época.
De forma alguma se quer dizer, aqui, que não jogar RPG seria pecado. O que se quer ilustrar é que a brincadeira de representar papéis e contar histórias foi contemplada pelo próprio Jesus e até usada para ilustrar uma lição bíblica, mas em momento nenhum foi condenada por ele: muito pelo contrário, a insatisfação nas propostas da mesma é que se configura como mau exemplo.
Resta ainda, contudo, a questão do vencer desafios. Com relação a isto, não encontra-se nos textos bíblicos condenação alguma. Seria o mesmo que condenar alguém por jogar cartas ou futebol: o desafio nestes casos é vencer o outro (seja ele um individuo ou um time).
Isto posto, demonstra-se que o RPG, por si só, não tem contra indicação alguma nas Escrituras. Nas palavras do apostolo Paulo:
Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesma imunda, a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda. (Romanos 14:14).
Desta forma, o RPG por si mesmo não é mal algum. Muitos críticos o questionam por tratar de temas como assassinato, feitiçaria e mitologia mas, na prática, nada disso configura-se em realidade, já que tudo é fictício. Observe este texto de Marco 7, 20-23:
E dizia: O que sai do homem isso contamina o homem. Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem.
Isto posto, o RPG não pode contaminar o ser humano, pois nada que vem de fora pode contaminá-lo, segundo diz o próprio Jesus. Além disso, como todo o jogo é virtual e imaginário, não existem absolutamente mal algum envolvido nele.
É preciso compreender, contudo, que estamos analisando discursos que definem um objeto e procuram produzir o efeito ao qual se destina. Entretanto, nem sempre o discurso, por mais que se destine a produzir um efeito, é bem sucedido no mesmo ou, mais importante ainda, deve ser tomado como uma verdade absoluta e inviolável (FOUCAULT 1996). Desta forma, seria muito ingênuo pressupor que todos os jogadores de RPG só estão interessados em se divertir e, em seus jogos, limitam-se a representar personagens fictícios, vencer desafios e contar histórias, jamais demonstrando traço algum de maus pensamentos, adultérios, prostituições, homicídios, furtos, avareza, maldades, engano, dissolução, inveja, blasfêmia, soberba e até mesmo loucura. Entretanto, não sendo esta a proposta dos Jogos de Interpretação de Papéis nem o resultado ao qual ele busca produzir, mas, sim, traços humanos existentes inclusive entre quem não joga RPG, é um erro considerar que este brinquedo destina-se a produzir maus comportamentos, ao invés de observar que os mesmos são produtos de pessoas especificas.
A questão se agrava quando a levamos ao âmbito Teológico. Considerando a ausência de ensinamentos bíblicos que reprovem a atividade de interpretar papéis e, mais ainda, as afirmações de que a maldade contaminadora brota no coração do homem de dentro para fora, e não ao contrário, como pressupor que seria o ato de interpretar papéis, vencer desafios e contar histórias algo pecaminoso?
Ou seja, teologicamente falando, todos estes traços reprováveis já estariam enraizados dentro destes indivíduos. Muitos destes já demonstravam um ou mais destes comportamentos antes de jogar RPG e, mesmo que parem, continuarão a apresentá-los. De forma semelhante, muitas pessoas jogam RPG e não demonstram nenhum destes traços. Se do coração de um grupo de jogadores de RPG só provém o desejo de se divertir e passar algumas horas agradáveis com amigos, então não há pecado algum nisso. No fim das contas, é no homem, não no RPG, que repousa a maldade.
Conclusão
Demonstra-se, com estas colocações, que o RPG não é impuro ou imundo a luz da Bíblia, sendo que o próprio Jesus não criticou seus conceitos mais básicos (representar personagens, contar histórias). O mal, quando ocorre, é proveniente do coração de quem está jogado. A única situação onde o RPG pode ser nocivo é quando ele leva aos maus pensamentos, adultérios, prostituições, homicídios, furtos, avareza, maldades, engano, dissolução, inveja, blasfêmia, soberba e loucura e, neste caso, o cristão deve parar de jogar e procurar ajuda, conforme ensina Jesus em Mateus 18:9:
Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem! Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.
Bibliografia
Bíblia de Referência Thompson. São Paulo: Vida 2002.
COOK Monte, TWEET Jonhathan, WILLIAN Skip. Livro do Jogador Dugeons & Dragons. São Paulo: Devir 2001.
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
_____. A Ordem no Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
GOWER Ralph. Usos e Costumes dos Tempos Bíblicos. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
HAGEN Mark Hein. Vampiro: a Máscara. São Paulo: Devir, 1994.
JACKSON Steve. GURPS. São Paulo: Devir 1994, página III.
Silva Pacheco
professor de História de Israel e Sociologia do Seminário Teológico Filadélfia